Quando surgiu a mutação genética que permitiu aos adultos humanos
continuarem a fazer a digestão da lactose, os seus portadores passaram a estar
em vantagem sobre os outros. Até lá, só as crianças digeriam este açúcar
natural do leite e pelos7-8 anos o gene da enzima “desligava-se”. Depois dessa
idade só os derivados do leite, como o queijo e o iogurte, podiam ser
ingeridos, pois nestes a lactose está reduzida a limites toleráveis. Mas a
mutação, surgida á volta de 7 mil anos na Europa central, permitiu que os seus
portadores tivessem cerca de 20% mais descendentes saudáveis do que os outros,
tornando-se uma mutação dominante no grupo. Estes expandiram-se pelo norte e
nos dias de hoje mais de 90% da população do norte da Europa consegue digerir a
lactose. Já no sul, descendentes de outros grupos neolíticos, menos de 40% tem
essa capacidade.
Hoje em dia, cerca de 35% da população mundial consegue
digerir a lactose. Os outros, na melhor das hipóteses ficam com problemas de
flatulência ou, na pior, valentes diarreias. Felizmente podem comer queijo e
iogurtes sem esses problemas.
O leite e derivados acompanham civilizações humanas desde
que estas se civilizaram: ou seja, desde que evoluímos de caçadores-colectores
para agricultores-pecuaristas. Recentemente circula uma campanha a alertar-nos
para os perigos destes alimentos. Dizem absurdos como “somos os únicos
mamíferos a beber leite em adultos” (também somos os únicos a comer batatas
fritas, usar roupa e andar de bicicleta). Dizem outras coisas mais preocupantes
como “o leite causa acidose e descalcifica os ossos, provocando osteoporose”. E
fazem comparações no mínimo ingénuas do género “nos países onde se consome mais
leite há mais prevalência de osteoporose ” Essas comparações estatísticas não
passam de absurdos pseudo-científicos. Uma demonstração divertida desses abusos
encontra-se num estudo que provou estatisticamente que regiões (penso que de
Inglaterra) com mais cegonhas também eram as que tinham mais bebés. Ao
contrário do que alguém mais apressado possa concluir, não foram as cegonhas
que trouxeram os bebés, mas ambos os factores estão relacionados com um
terceiro: o tamanho das regiões: as maiores tinham mais cegonhas e mais pessoas,
logo mais bebés. Pronto. No caso dos países com mais casos de osteoporose, há
muitos outros factores que podem estar relacionados com a incidência desta
doença, como outros hábitos alimentares, sedentarismo, genética…
Então, e o que dizem as centenas e centenas de artigos
científicos sobre os efeitos do leite na saúde?
- O leite causa acidez do sangue?
Não! Nem o leite nem outro alimento. Este “boato” surgiu
porque após a digestão das proteínas (que podem ter origem no leite, carne ou
vegetais) há produção de moléculas ácidas que são excretadas pela urina. No
entanto, é a urina que fica mais ácida, mantendo-se constante o PH do sangue (entre
7.35–7.45). As proteínas do leite produzem tantas moléculas ácidas quanto as
proteínas da soja, por exemplo, mas considerando o leite como um todo (e não só
as suas proteínas), o balanço ácido é negativo, ou seja, os metabolitos
resultantes da digestão de todos componentes do leite são ligeiramente
alcalinos – logo, não acidificam a urina.
Leite e osteoporose:
Com o aumento da
acidez da urina devido ao metabolismo das proteínas, há também perda
de cálcio. No entanto, quando há perda de cálcio pela urina, reduz-se a perda
deste por outras vias e pode mesmo aumentar a sua absorção no intestino,
portanto o balanço final mantém-se neutro em condições normais, não havendo
descalcificação e eventual osteoporose. Com a ingestão do leite a urina não se
torna mais ácida, mas mesmo assim há perda de cálcio. Não significa que seja a
expensas do cálcio nos ossos, mas sim como resposta ao aumento de cálcio
absorvido no intestino. O leite e derivados não só NÃO descalcificam os ossos,
como no geral favorecem a saúde destes ao serem uma boa fonte de cálcio,
vitamina D e outros nutrientes importantes, como o potássio e magnésio, e
também componentes bioactivos que favorecem o metabolismo ósseo. A osteoporose
é uma doença multifactorial e a ingestão de cálcio não pode prevenir a perda
óssea causada por outros motivos como o sedentarismo, etc.
Leite e cancro:
Estas entidades “World
Cancer Research Fund” e “American
Institute for Cancer Research report” concluíram que o leite está associado
a menor incidência de cancro colorectal e uma ligeira menor incidência de cancro
na bexiga. Nos restantes tipos de cancro não há evidências ou são
contraditórias, mas no caso de cancro na próstata há uma ligeira maior incidência
de casos, possivelmente associada, ao excesso cálcio. O ponto-chave poderá
estar nessa palavra: excesso. Já dizia Paracelsus há 500 anos atrás: é a dose
que separa o remédio do veneno. Litradas de leite podem não ser benéficas. Tal
como litradas de cerveja, vinho…ou mesmo água! Pois é, também faz mal. Ouviu
dizer que devemos beber 2 litros de água por dia? Pois nessa conta inclua a
água obtida através dos alimentos e reduza os copos para metade. Água em
excesso pode causar distúrbio na concentração de sais no organismo - chama-se hiponatremia.
Pois até agora não se provou que leite e derivados em
moderação sejam prejudiciais à saúde mas, pelo contrário, sabe-se que são
benéficos, tendo um efeito protector contra doenças cardiovasculares, diabetes e
síndrome metabólica.
Os outros motivos de ataque ao leite, relacionados com a sua
produção, podem aplicar-se a qualquer alimento produzido de forma convencional,
havendo como alternativa os produzidos em modo biológico.
Por fim, para quem acha
que todos estes estudos científicos são uma conspiração da poderosa indústria
do leite, que alcança as centenas de laboratórios existentes em todo o mundo, incluindo institutos de investigação nos EUA, Escandinávia, Suíça, China, Paquistão, etc., pergunta-se se
essa campanha de desinformação não será antes uma conspiração da poderosa indústria
da soja transgénica (já correspondendo a cerca de 81% da produção mundial) para
aumentar o consumo de leite de soja …transgénica?
Constança Camilo-Alves
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